26 de março de 2015

Curto-Circuito

Você me perguntou uma vez se eu estava bem.
Me perguntou o que eu sentia sobre tudo aquilo que tinha acontecido.
Admito que internalizei muitos sentimentos sobre aqueles dias. Eu não conseguia nem falar direito sobre isso sem estremecer, e ainda sentia aquelas pressões no peito bizarras que eu eu dizia.
Lembro daquele dia. Lembro que eu menti.
A grande verdade é que as pessoas não gostam de ficar do lado de quem está mal. Demorei pra perceber isso, mas o questionamento é o primeiro passo para as conclusões, e ai eu me perguntei: O que realmente aconteceu? O que eu senti?
É, você tinha perguntado primeiro, mas eu era um garoto bagunçado. Tinha muita coisa errada, e aí você sabe... Uma coisa atrai a outra...
Alias, nem te contei que viciei em um joguinho de celular. City Bloxx. Você tem que construir prédios, E com um andaime pendulando você vai empilhando um andar em cima do outro até chegar no topo. Claro, como se fosse tão fácil... Mas na realidade é bem difícil. Você tem que colocar cubo após cubo enfileirados, em perfeita geometria, de uma forma que o prédio não perca o equilíbrio e caia. E a grande verdade é que, se você não encaixar perfeitamente o primeiro bloco, você nunca vai encaixar os outros.
Quanto mais torto os prédios, menor a população da sua cidade, e quanto menor população, mais vazia a cidade fica. E não é só por um final de semana estendido, era pra sempre. Uma cidade sem habitantes. Uma cidade fantasma.
Eu era a cidade fantasma.
E sabendo disso cheguei numa conclusão...
É... Na verdade eu já sabia disso...
...
Lembro de uma vez...
Eu era garotinho. Devia ter uns 8 ou 9 anos no máximo. Sabe como as memorias se misturam com outras...
Estava em casa com meus pais, estava chovendo forte, e já era tarde. Tudo estava escuro do lado de fora de casa, apenas uma pequena lampada 110 iluminava porcamente o ambiente. No lado de dentro estávamos em mais um desses finais de finais de semana, sentados na frente da televisão intercalando entre Casas dos Artistas e Fantástico. Mas alguém tinha chamado no portão. Lembro do meu pai reclamando "quem saiu de casa nesse temporal pra me visitar?".
Os dois foram conversar como um velho amigo, E eu fui atrás. Minha mãe me viu sem sandália e de cuequinha e não deixou eu pisar descalço no chão molhado porque estava trovejando muito.
Lá em casa sempre teve muita goteira, e aquele telhado da garagem sempre foi muito feio. Quando chovia forte tínhamos que espalhar baldes por toda a casa, mas sempre sobrava uma que esquecíamos, e molhava todo o tapete da sala, ou a mesa da cozinha. Eram sortidas.
Voltei emburrado pra dentro de casa caçando meu chinelo do Mickey, quando de repente a luz varanda pisca em grande claror. Uma luz incandescente o bastante para virar o rosto e queimar os olhos, então, um estalo de vidro se quebrando.
Uma infiltração tinha molhado os fios da lâmpada.
Aquele clarão que me chamou atenção, era o inicio do processo do curto circuito, que segundo o dicionário é quando há uma passagem elevadíssima de corrente elétrica em um circuito que não esteja preparado para receber tal carga.
Eu estava descalço com poças enormes ao redor, caindo grossas gotas de água do céu, e estava pegando fogo na fiação da minha casa.
Senti o calor do fogo forte, violento, dançando contra a minha parede. Olhava por todos os lados e só tinha água, escorrendo pelas paredes, e meus pés frios já molhados.
Ali era tudo o que eu conhecia. Meu pai, minha mãe, e uma noite de cinema em família. Não precisava me preocupar com nada, apenas em ser amado pelas duas únicas pessoas que sei que são sinceras comigo.
Esse era o meu mundo, e o fogo estava se preparando para consumir isso. Acredito que minha mente infante tenha fantasiado um pouco, mas naquela idade eu só lia gibi e brincava no quintal. Não tinha nada a perder, mas perder isso doía muito.
No final meu pai desligou o quadro de energia...
Foi foda...
Coisas ruins acontecem o tempo todo. Foi um tempo difícil, admito até que pensei em me matar, porque eu estava aterrorizado com todo meu mundo desabando, mais uma vez. Exatamente tudo que eu conhecia, estava sendo destruído, e eu já não teria mais para onde voltar.
Então eu não estava bem. Nunca estive bem.
Eu sentia terror.