10 de junho de 2014

Decepção

Para o Meu Líder.

Mas o que será que aconteceu?

Me lembro uma vez, num passado distante, daquele garoto. Estamos num ponto de ônibus quando uma professora do colégio dele passou. Ele a abordou, brincalhão como sempre, contou uma piada e ela gargalhou. Viu que estava ao seu lado e ele mentiu:

 - Ah... Esse aqui é meu irmão.

Apertei aquelas mãos gordas com o maior orgulho. Eu, irmão dele.

Sim, sei que era brincadeira, vindo dele só podia ser, mas a onda de felicidade que me imundou foi indescritível. Não sei porque, mas fiquei feliz.

Não... Eu sei do porque.

Nos conhecemos à muito tempo, eu também era um garoto, mais maduro, mas tinha aqueles pensamentos típicos da infância. Minhas preocupações eram outras.

Era um grupo de jovens associado com uma igreja, desses para tirar crianças e adolescentes das ruas e colocar alguma coisa boa na mente deles. Sabe como dizem: Mente vazia, oficina do diabo. Eu era uma dessas crianças, vem de baixo, e do nada começa a interagir com outros no mesmo nível. Você começa a ter amigos de verdade.

Acampávamos, aprendíamos nós e amarras, sobrevivência na mata, fazer fogueira campestre e coisas do tipo.

Desbravamos o mundo.

E ali estava ele. cabelo desgrenhado e de fácil riso. Diferente dos outros, não se importava muito com as aparências. Tímido, muito tímido com as mulheres.

Uma vez eu prometi uma garota pra ele.

 - Não se preocupe, um dia vou te arrumar uma namorada que essa molecada toda vai morrer de inveja.

Falhei. Mas ele não ajudava muito também.

Me apeguei com facilidade. Ele também. Durante muito tempo a amizade dele foi uma das poucas coisas boas que tive.

Virei homem, virei líder. Nosso grupo já não tinha mais diretoria e a coroa resta sempre pro mais velho, mas nem sempre o mais experiente. Tive que entrar na igreja, não foi obrigatório, foi por amor. Virei líder, virei homem. Já o garoto continuou garoto, continuou amigo.

Quando o grupo entrou em crise, ele sempre foi o rosto familiar que sobrava. Tomamos muita chuva juntos. 

Uma vez o íamos acampar, o grupo já não tinha a mesma força do dia em que entrei, mas mesmo assim tínhamos que acampar naquele final de semana para esquecer um pouco o muro das lamentações que a cidade grande é.

Eu tinha que pegar bambu para fazer armações e móveis de campo. Não tinha carro. Estava sozinho, e estava chovendo. Ele chegou do meu lado e disse:

 - Vamos lá!

Não parou de chover um minuto naquele dia. E ele estava logo atrás de mim carregando 20 Kg de bambu numa ladeira sem fim.

Já sofri outras perdas. Garotos bons que se foram, voltavam, e iam depois.

 - Eu gosto de você porque você é um lixo e sempre vai ser!

Ele riu.

 - É. Eu sei que sou um lixo.

Quando brigávamos éramos dois gladiadores em arena. Ele não tinha paciência, era mentiroso, boca suja e cabeça quente... Não baixava a cabeça pra mim. Delinquente.

Mas agora me pergunto, o que será que aconteceu?

O garoto virou homem e foi embora. Assim como os outros. Foi embora por um caminho que temo não voltar mais.

Inventou de estudar comunicação. No meio de tanto curso superior, porque quis fazer logo comunicação? Admito, ele tinha facilidade com câmera, contava histórias como ninguém. Não aguentava correr 50 metros numa gincana, mas dava um papel e caneta que ele fazia o que fazia de melhor.

Então ali estava ele na rua. 

Fumando, com o olho vermelho estufado parecendo um japonês. Barba desgrenhada e se vestindo como um grunge noventista. Falava de revolução, libertação sexual e outros absurdos.

Não acredito em destino mas penso, pra onde mais iria esse menino a não ser esse caminho? Deus fala certo por linhas tortas, mas essa está torta até pra ele.

Vejo suas fotos embriagado, entorpecido. Não gosto de olhar, lembro do reflexo do que um dia ele já foi.

Ensinei como um filho, amei como irmão. 

 - É trevas!

Era o que dizíamos quando alguma coisa estava muito errada.

Sou homem. Tenho minha filha para cuidar, Lua da minha vida, meu sol e estrelas. Não posso mais estagnar por bobeiras. Ensinei o que eu sei, se não foi o suficiente, o tempo venceu. Seguimos a mesma estrada por muito tempo, hoje ele seguiu outro caminho. Contentamento ou nada.

Ele é homem, não mais aquele garoto. Infelizmente a roda do tempo gira num único sentido. Enquanto isso eu lembro.

Por isso eu lembro.

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